Caco Coelho na direção de 'A Serpente', RJ -2000 - foto: Ana Branco
“ O negócio é o seguinte, disse Nelson Rodrigues, me chamavam de tarado. E, um dia, estava lá, na manchete do jornal: Nelson Rodrigues – este tarado! E amigos meus vinham me perguntar, por que eu não falava de pessoas normais. É justamente isso do que a minha obra trata, da essência do ser humano, sem nunca falsificá-la. E por isso, que ela será permanentemente atual.” Nelson Rodrigues, passados exatos 30 anos da sua morte, é o dramaturgo dez vezes mais encenado em todo o país. Na crônica esportiva ele é, até hoje, uma das principais referências. Para o cinema, foi o autor que mais textos teve adaptados, ultrapassando 30 filmes. Na televisão, são marcantes as produções da Rede Globo, em especial Engraçadinha e seus amores e A vida como ela é... Publicou 10 romances, entre eles o revolucionário O casamento. Escreveu colunas diárias por mais de 50 anos, produzindo uma das maiores, se não a maior, obra de jornalismo literário, considerando tanto a produção brasileira, quanto a portuguesa. Mas sua contribuição mais contundente às artes de um modo geral foi, certamente, a constituição de uma linguagem genuína. O cerne da questão rodriguiana, está enraizado num inarredável sentimento de brasilidade. País jovem, irremediavelmente jovem, o Brasil recebeu, ao longo de sua formação a mais diversificada procedência de etnias de todo o globo terrestre. Mesmo antes do achamento português, já as tribos indígenas espalhadas pelo imenso país continente, tinham hábitos e costumes, amplamente diferentes entre si. O branco europeu, que levou quase quatrocentos anos povoando o Brasil, teve origens as mais distintas possíveis, apesar do predomínio lusitano, favorecido pela aclimatabilidade, precedida por 700 anos de ocupação moura na península ibérica. Também o negro, que foi submetido ao sistema de escravatura de maior duração do mundo, era procedente de quase toda a vasta costa africana, característica que o manteve próximo ao litoral brasileiro. Enquanto os povos indígenas eram exterminados em toda a nova América latina, o nosso índio ia sendo absorvido pelo avanço desbravador rumo ao interior, gerando a sociedade senhorial. Este tipo, observado por Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala, estará na base da formação daquele ser brasileiro que irá surgir. O desmedido poder do senhor de engenho, acima da igreja, a sedução da índia ou da negra, resultando no amor masoquista, são aspectos presentes na Casa Grande e que serão revelados pela primeira feita na dramaturgia brasileira por Nelson Rodrigues, naquilo que ele batizou como Teatro Desagradável. Toda esta mescla fez com que a identidade do brasileiro levasse séculos para se constituir. O fim da escravatura em 1888 e no ano seguinte a proclamação da República, são marcos da origem deste nascimento. Durante algumas décadas ainda, o pensamento imperial permaneceu, servindo de base para a geração de diversas sociedades dentro do mesmo país.
Nos anos 30, se evidencia a manifestação nas artes com caráter regionalizado. A cultura brasileira começa a ser expressa através dos quadros de Tarsila do Amaral, da música de Villa-lobos, da inteligência de Aníbal Teixeira, da literatura de Mario e Oswald de Andrade entre tantos outros. Os jornais, que até meados do século ainda eram impressos além mar, passam a ser o principal veículo de comunicação. Esse ambiente é que vai dar origem aquilo que conhecemos como uma estética rodiguiana. Mario Rodrigues, pai de Nelson, é um esbravejador sem par, dono de uma verve que o tornou o jornalista mais influente de seu tempo. Ele será o responsável pela contaminação desse sentimento que reconhece a grandeza de uma pátria, nos seus primeiros passos rumos a uma autonomia cultural. È justamente este norteamento que permite surgir nas páginas de seus jornais a primazia do futebol como uma paixão nacional. Até o aparecimento de Mario Rodrigues Filho, irmão de Nelson, os esportes em evidência no país eram o basquetebol, o boxe, o voleibol e o remo, tanto é que, os primeiros clubes de futebol no Rio de Janeiro, são clubes de regatas na sua origem. O futebol ainda era amador e, sequer, havia a consciência da necessidade da formação de um escrete nacional. Foi pela promoção feita nas páginas de Crítica, o principal jornal dos Rodrigues, que o esporte bretão foi profissionalizado, que os primeiros campeonatos ocorreram, até a própria Copa do Mundo de 50, com a construção do maior estádio do Mundo, que leva seu nome, foi obra de Mario Rodrigues Filho. Também o samba obteve nestas mesmas páginas a promoção de seus primeiros concursos, entre as recentes escolas que começavam a aparecer. O teatro, por tratar-se de uma arte complementar, que necessita receber os eflúvios de outras manifestações para que possa emergir numa outra instância, só foi encontrar uma expressão própria quando da invenção de Nelson Rodrigues. Ele foi determinante para que uma linguagem identificada com este tipo que acabava de nascer subisse aos palcos. Nunca antes o nosso teatro tinha alcançado uma expressão própria.
Nelson Rodrigues chegou a dizer que toda a sua obra versa sobre um mesmo assunto, que coloca pari passu o amor e a morte, o patético e o humorístico. Isto era para deixar claro o seu propósito fundador de uma linguagem genuína brasileiro. Este fator, de colocar a disposição da dramaturgia este poderoso instrumento, o distingue como um dos autores mais revolucionário de todos os tempos, muitas vezes, incompreendido na sua amplidão libertária. Nelson era um reacionário que defendia, radicalmente, a liberdade individual. Os devaneios mais alucinantes, as paixões dilacerante, são mecanismos que ele utiliza para, através do delírio, achar esta essência.
Nesse momento em que todo o mundo parece esperar do Brasil, o país tão sonhado do futuro, caminhos mais humanos, será inevitável uma releitura da obra deste gênio, fincadamente um autor brasileiro.
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